terça-feira, 14 de abril de 2009

Quando o cuidar de um é cuidar de dois.

O caso de Rodrigo nos remete diretamente ao caso de sua mãe. Rodrigo tem o diagnóstico de Retardo Mental com alguns sintomas psicóticos. A complexidade de seu caso nos leva a assegurar a importância de também assistirmos a família de nossos pacientes e de como, às vezes, é preciso recuar em uma alta para que um outro familiar possa também se tratar. Nossa equipe, em nossas discussões sobre o caso, parece ser unânime na sensação de que “Rodrigo passou do ponto da alta”. Porém isso foi inevitável. Sua mãe, que acredito ser uma psicótica, embora isto também seja uma discussão, no momento em que iríamos formalizar a alta de Rodrigo, em que encontrava-se em condições para retomar seu tratamento no CAPS, D. Ana tem sua primeira internação psiquiátrica, de fato, em nossa enfermaria feminina. Em tratamento em ambulatório, já havia passado pela emergência psiquiátrica em outras situações mas nunca tinham lhe indicado uma internação. Tivemos que recuar neste momento, pois apesar de Rodrigo ter outros dois irmãos (Julio, que mora na mesma rua e Ana Lucia, que mora com Rodrigo e a mãe), não é possível Rodrigo estar em casa sem a presença da mãe.

Uma das questões que nos fizeram pensar em refletir neste caso é a evolução da doença de Rodrigo, aparição de novos sintomas e a concomitante evolução da doença psiquiátrica de sua mãe. Quando um piora o outro piora, quando um melhora, o outro melhora.

Todas as internações de Rodrigo foram pelo mesmo motivo: heteroagressividade direcionada à mãe. Ele bate nela e bate mesmo! O que ele fala disso? “Ela não cuida mais de mim!” E isso é verdade quando ela não está bem, somente fica deitada na cama, sem alimentar-se e por dias sem tomar banho. D. Ana e Rodrigo tem uma relação confusional, simbiótica.. Ela o chama de “meu bebê, meu filho especial”. Ela “o cobre de noite, dá comida batida no liquidificador para ele não se engasgar, limpa sua bunda depois que ele faz cocô”. Ele a chama de “minha mamãezinha querida, ela me cobre, me dá comida e me limpa”. Nos momentos que Rodrigo está agressivo, ela o coloca de castigo: “o amarra em casa para ele pensar no que fez”. Uma vez chegou a levá-lo para ver o corpo de um homem morto no intuito de que ele se comportasse.

Rodrigo tem história de problemas em seu desenvolvimento desde a infância. Estudou pouco porque não conseguia aprender. Levava uma vida limitada mas conseguia produzir dentro de seus limites: chegou a trabalhar entregando gás e gostava do que fazia. O pai dele faleceu há mais ou menos 15 anos e Rodrigo presenciou o infarto do pai.

A história institucional de Rodrigo na psiquiatria coincide com o período em que a irmã Ana Lucia vem morar com Rodrigo e a mãe, após separação conjugal. Ana Lucia parece separar outro casal: Rodrigo e a mãe. Apesar de toda a dificuldade, Rodrigo e D. Ana pareciam se entender, mas Ana Lucia era contra a mãe fazer todas as vontades do filho: “ele passa o dia gritado: mãe me limpa, mãe me cobre, mãe me dá comida, é um inferno! Eu não deixo ela fazer nada, Rodrigo não é mais criança, ta muito grandinho, daí ele vai e bate nela!”. A mãe retruca: “Meu filhinho é especial, eu não queria engravidar, mas se Deus me mandou um filho assim mesmo, mesmo contra a minha vontade, eu tenho que cuidar. Deus dá um filho especial a quem é também especial, só pra quem pode cuidar. E eu cuido dele muito bem!”

Em 2004 Rodrigo iniciou o uso de medicação psiquiátrica após ter presenciado a primeira tentativa de suicídio da mãe. Começou a apresenta-se agressivo e impulsivo. Seu discurso apontava a possibilidade de vivências psicóticas, mas eram pouco elaboradas e muito fragmentadas. Dizia que via seu pai morto e que ele estava lhe chamando para perto dele: “a alma do meu pai está me chamando, tenho certeza que ele está lá na janela da minha casa, a minha mãe fala com ele: vem Onofre, venha nos ajudar!”

As internações de Rodrigo tem sempre o mesmo curso, porém nesta última o que mais se apresenta é uma intensa vivência alucinatória. Ele é sempre muito querelante, pede que coloquemos sua roupa, que de a ele a comida na boca, que o cobrimos na cama, chama a todos de “tia/tio” ou quando consegue gravar um nome, chama a todos por aquele nome. Nesta internação reconhece Júlio como alguém que faz uma diferença, como alguém que cuida dele no CAPS e o CAPS como o lugar de seu tratamento. Rodrigo joga-se muito no chão, machuca-se muito a ponto de ser suturado várias vezes. Ele ora diz que não sabe o que acontece, ora que está com saudades da mãe, ora que cai porque tem uma baleia dentro dele que come ele por dentro e que ela não quer ficar caindo porque não quer morrer, quer que a baleia morra! Por vezes, sente-se perseguido, fala que querem mata-lo, anda nu pela enfermaria, entra várias vezes no banho, vai várias vezes ao banheiro, agride outros pacientes impulsivamente. Já chegou a agredir algumas pessoas da equipe. Fala que “escuta uma voz que o manda não bater, mas ele não pode obedecer esta voz, é uma voz de mulher malvada”.

O que mais nos deixa preocupados com Rodrigo é a constante oscilação em seu quadro. Passa uma semana muito desorganizado, com franca atitude alucinatória, sai correndo pelo hospital, já foi para a rua colocando-se em risco, sua feição muda, parece de fato estar sofrendo muito. E no dia seguinte está bem, sem cair, deambulando com mais firmeza, participando de atividades, conversando sobre sua vida.

No último mês de internação obteve piora de seu quadro. Talvez pela internação de sua mãe. Ficou duas semanas sem vê-la. Pedia muito para encontra-la. Em conversa com a equipe que a assistia na enfermaria feminina, optamos por promover alguns encontros e um deles me chamou muita atenção. D. Ana chorava muito ao ver Rodrigo e dizia para ele: “meu filho, amor da minha vida ... você está vivo, achei que você estivesse morto e que as pessoas estavam me deixando aqui para que eu não fosse no seu enterro”. Rodrigo nada falava, aliás nesta visita permaneceu em silêncio durante todo o tempo. Perguntei a ela porque ela achava que Rodrigo estava morto e ela conta que o Diretor do hospital disse isso a ela em uma entrevista que fez com ela: “ele disse assim: D. Ana, você tem que deixar seu filho seguir o caminho dele! Seguir o caminho dele sem mim, só morrendo, achei que ele tinha morrido! Mas nem morto eu vou me separar dele! Se eu tiver que morrer, se eu sentir que estou morrendo, eu mato o Rodrigo e depois morro em paz!” Rodrigo nada falou e a única coisa que me ocorreu em intervir foi dizer a ela que não tinha entendido o que ela tinha me falado. Ao que ela me explica: “Simples: eu mato o Rodrigo e depois me mato!”

Essa é minha grande preocupação neste caso: que isso de fato aconteça.
Parece só haver vida em Rodrigo e D. Ana quando estão juntos, porque separados parece só haver morte, uma morte subjetiva que pode chegar as vias de fato. Ao mesmo tempo que isso nos preocupa, não há como pensar em separá-los. Onde há perigo? Juntos ou separados?

Quando Rodrigo está sob intensa atitude alucinatória nada oferece uma barra, nenhum comando, nenhuma força física, ele anda sem rumo e o que o faz parar é a seguinte frase: “Rodrigo, vamos ver sua mãe!” Ele imediatamente pára e consegue nos escutar. Será que a mãe, que é quem o invade sempre é o que lhe oferece também uma barra?
Adriana Cabana de Q. Andrade.

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