sexta-feira, 10 de abril de 2009

Na internação psiquiátrica, em quê se deter?*

* Texo apresentado em seminário interno da enfermaria masculina de hospital psiquiátrico no município de Niterói. Nome do paciente é fictício.

Em março de 2008 tivemos em nossa enfermaria masculina Ismael, paciente de 28 anos que possui em sua história de vida um longo percurso na psiquiatria. Porém, em seus 13 anos de história psiquiátrica, ainda não conseguimos oferecer a Ismael qualquer resposta. Talvez, pelo fato dele não formular pergunta alguma. Nenhum pedido de ajuda é direcionado, nenhum sintoma produtivo de caráter delirante ou alucinatório é evidente.
Quem é Ismael? Sabemos caracterizar alguém, definir sua personalidade, através de seus atos e principalmente de seu discurso. Ismael é assim: “nervoso”, como ele mesmo se define. Tal significante parece colar-se em tantos outros: impulsividade, heteroagressividade, atitude desafiadora, postura reivindicativa e pedante. Quando vamos falar de Ismael, invariavelmente, um destes adjetivos está presente. Mas isso não me basta!
A relação com Ismael é sempre tensa. Nunca se sabe o que virá: quando não está aos brados em seu constante tom de voz alto, está em silêncio, um silêncio interrompido por implicâncias a outros pacientes em tom de voz quase inaudível. Ele está completamente adaptado à rotina da enfermaria. Ismael, institucionalizado? Como é possível? Quando pensamos na desinstitucionalização, logo nos remetemos a um trabalho com pacientes com baixo poder contratual, nada autônomos, dependentes de outros. É difícil encaixar Ismael neste triste capítulo da psiquiatria. Ele parece ter condições mínimas de cuidar-se, mas a meu ver, somente parece.
Em pesquisa em seu prontuário deparei-me com alguém exatamente como hoje: hostil, agressivo, desafiador, simulado e dissimulado. Isso nos falaria de quê: a primeira vista de um transtorno de personalidade. Seu prontuário está impregnado de F60 e F91, respectivamente, transtorno de personalidade e transtorno de conduta. Resisti muito em afirmar que Ismael possa se encaixar no que chamamos de eixo II. Durante todo o tempo em que está internado, sigo qualquer pista que possa me dizer que isso ou aquilo pode ser psicótico. Confesso que tenho tido muitos impasses e é por isso que compartilho aqui a dificuldade de diagnóstico deste caso e com isso a dificuldade de condução terapêutica.
Ismael chegou a nossa emergência pela primeira vez em junho de 1998. Veio acompanhado de sua mãe, recém-saído do Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje, Instituto Nize da Silveira, onde não pôde mais permanecer em internação pela sua idade. Estava com 18 anos. Já havia sido internado lá por diversas vezes desde 15 anos de idade. A queixa principal era: “nervosismo”. Ele mesmo explicava isso como sendo uma reação às situações em que se sentia provocado pelo outro com brigas ou quebrando as coisas. Apresentava-se irritado e querendo logo saber se seria ou não internado. Ismael parecia possuir certo déficit intelectivo, não conseguia responder algumas perguntas sem ajuda da mãe. Foi encaminhado ao ambulatório onde esteve em tratamento de forma mais ou menos regular durante quase um ano e meio, rompendo pelo afastamento de seu médico residente na época a quem Ismael tinha um certo vínculo, apesar de inúmeras faltas injustificadas. Seu médico questionava-se várias vezes se ele de fato tomava a medicação. Ele comparecia, quando não atrasado, muito antes da consulta, exigindo ser logo atendido: “Importante destacar que o tom da voz de Isaque é sempre elevado e em crescente e quando é interrompido alega ser ‘nervoso’. Estranhamente solicita orientações para caso venha a obter trabalho de carteira assinada, se conseguiria, após 6 meses, ‘se encostar’, assim como pessoas que ele conhece. Digo então que ele sequer começou a trabalhar e já pensa em se encostar. Logo em seguida, ri dissimuladamente, dando-me a impressão de saber exatamente o que faz. O ganho secundário é deveras evidente”. (Prontuário)
Em abril de 1999, retornou ao tratamento no ambulatório justificando suas faltas porque estava internado em hospital psiquiátrico em São Gonçalo. Sempre hostil, irritado, queixando-se do tal “nervosismo”. Vale destacar que a mãe sempre estava presente e implicada no tratamento do filho. Sempre o acompanhava e comparecia para buscar as medicações quando Ismael não queria ir.
Em junho de 1999, Ismael solicitava internação a seu médico em toda consulta alegando que estava “muito nervoso”, mas não apresentava nenhum sintoma produtivo ou outro qualquer que indicasse uma internação.
Em outubro do mesmo ano foi até a emergência e fez o mesmo pedido e como não foi atendido, tornou-se extremamente agressivo, queria sair da consulta a todo o momento, não aceitou as medicações: “Alegava que não virá mais ao HPJ porque aqui não é internado. Justifica os pedidos de internação porque fica sozinho o tempo todo. Está ‘exilado’ em São Gonçalo em razão do seu comportamento explosivo e, não raro inadequado. No momento sem convívio com a família, o que é inviável”. (Prontuário)
Ismael passou a não morar mais com a mãe por imposição dos tios que culpavam a mãe dele por ele ser como é. Morava sozinho em um quarto alugado pela mãe que também assumia todas as despesas.
Em janeiro de 2000, um novo pedido de internação de Ismael é corroborado por sua mãe que alegava que a convivência estava insuportável. Em março deste ano ele é internado no HPJ por 10 dias. Permaneceu, durante a maior parte do tempo, inquieto, logorreico, irritado, com pensamento perseverante em relação a inúmeras queixas somáticas: cefaléia, tosse, enjôo, tonteira, porém o “nervosismo” não parece entrar nessa série. Ele é uma justificativa para seus atos. Isaque passou a falar muito de problemas com os vizinhos, fato que foi confirmado pela mãe e pela avó: “ele é muito encrenqueiro”. Ismael apresentava atos destrutivos na enfermaria: quebrava portas e louças dos banheiros, fazia ameaças à equipe. Não apresentou sintomatologia psicótica produtiva em nenhum momento.
Em agosto de 2000 uma nova internação na enfermaria masculina. Desta vez, veio trazido pelos tios após briga física com a mãe em que a ameaçava com uma faca. A família alegava que a relação estava insuportável com a família e com os vizinhos que, permanentemente, tinham que “salvar” a mãe de Ismael de suas agressões. “Falam dele como um delinqüente e que não podem mais ficar com ele, solicitam uma internação para sempre ou uma ordem judicial para que ele não chegue mais perto da mãe”. (Prontuário)
Durante esta internação, a equipe perguntava-se: tratava-se da personalidade de Ismael ou existe um grau de comprometimento psíquico que justificaria esse comportamento heteroagressivo sistemático? A relação familiar tendia ao abandono e a já relatada tendência ao hospitalismo tornava-se cada vez mais evidente. Ismael permanecia pouco tempo distante das longas internações. Não havia nenhuma produção delirante ou alucinatória. A avó posicionava-se de maneira radical: “ele não é maluco não, ele é bem esperto, ele sabe com quem briga, com quem mexe ... ele pode até ter um problema de cabeça porque não conseguiu estudar direito, mas é safado também, ele é mal, é mau caráter ... ele não vai morar com a mãe e ponto final, isso já está decidido”. Em determinado momento, Ismael faz chegar um bilhete para a sua avó, com assinatura de um suposto médico do hospital comunicando-lhe de sua alta. A equipe é surpreendida com este fato e a avó justifica: “eu vim dizer que essa letra é dele, sei que vocês não mandam bilhete, agora eu pergunto a vocês: isso é coisa de maluco?” Palavras da avó.
Ismael havia saído de alta desta internação e em 10 dias retornava para a emergência. Sua alta será justificada mais adiante. As equipes, tanto da emergência como da enfermaria masculina, questionavam-se sobre e efetiva validade das reinternações de Ismael, uma vez que se mantinha sem alteração em seu quadro. Entendiam que o próprio ambiente da internação contribuía para o ciclo vicioso das atuações, como agressividade e inadequação de condutas, que acabavam por adiar as perspectivas de alta, sem entretanto, trazer efetivas melhoras clínicas. Um episódio de uso de maconha junto com outros pacientes, dentro da enfermaria, acabou precipitando sua alta com encaminhamento para São Gonçalo, pois ficaria morando junto com a bisavó materna. Mais uma vez ele retornava com a mãe que expunha os mesmos impasses das últimas admissões, ou seja, impulsividade, heteroagressividade, hostilidade relativo a familiares e vizinhos. Foi encaminhado, mais uma vez ao leito de observação na emergência para melhor avaliação do caso, uma vez que a possibilidade de mandá-lo embora, parecia ser, mais uma vez, o adiamento deste problema. Porém, a permanência dele na observação foi bastante difícil. Ele estava permanentemente criando situações que chamavam à intervenção de um limite. O espaço fechado parecia o deixar ansioso: fumava compulsivamente e mantinha atitude apelativa, sempre reivindicativa. Foi decidido encaminhá-lo a uma internação em clínica contratada pelo SUS pela falta de vagas no hospital municipal de referência e, tendo em vista o péssimo suporte familiar, foi preciso pensar que ainda havia o que ser observado no campo da psiquiatria que girava em torno da questão diagnóstica.
Isto ocorreu em setembro de 2000. Em junho de 2001 estava fora da internação e de volta a emergência solicitando internação. Ao receber a negativa começa a falar que tem gente o perseguindo, que tem veneno na sua comida, mas isso não convence a equipe que avalia como uma simulação. Ismael não consegue sustentar tais argumentos. Retorna no mesmo dia com o Corpo de Bombeiros: estava jogando paus e pedras para cima, em frente ao hospital, do outro lado da rua. Foi encaminhado novamente a internação onde lá permaneceu por longo período novamente.
No ano seguinte Ismael retorna a emergência, mais uma vez, solicitando internação. Sua peregrinação era mensal: setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março de 2003. Sempre pouco cooperativo, irritado, hostil, ameaçando a equipe que voltaria com o Corpo de Bombeiros caso não o internássemos e ele de fato retornava com os militares. Mas ele não foi internado nesta época, a equipe conseguia mantê-lo apenas em observação por uma ou duas noites e ele saía. Sempre com muita dificuldade de aceitação familiar. Foi parar em abrigos religiosos e da Prefeitura.
No ano de 2004, perdemos os passos de Ismael. Em 2005, mais um pedido de internação, mas dessa vez corroborado pelos familiares. Ele veio com o SAMU pois havia quebrado todos os vidros da casa da avó alegando que esta estava “escondendo sua mãe dele”. A princípio isto soa delirante: ele acha que a avó esconde a mãe dele? Mas isso é verdade: a avó não diz a Ismael o paradeiro da mãe e isso é real e persiste até hoje. Nesta ocasião, ele quebrou o vidro da recepção da emergência, agrediu a equipe, jogou as cadeiras na parede e foi encaminhado a internação onde permaneceu por 5 meses. Quando recebeu alta, sua avó o trouxe no dia seguinte para a emergência. Estava muito irritada com ele e vice-versa. Ismael pede para ser transferido para um hospital no Rio de Janeiro e recebeu mais uma negativa o que o fez voltar ao hospital horas depois, subir no telhado e jogar pedras nos carros do estacionamento alegando que estava nervoso e que precisava ficar internado: “Não exibe verdadeira agitação psicomotora posto que seus movimentos são planejados e para fins específicos e sempre cuidados de forma que ele não corra riscos. Não se cortou, nem se machucou em nenhum momento”. (Prontuário) Passou a noite na observação e foi liberado no dia seguinte.
Em 2006, novamente, passou 10 meses internado. Esta internação teve um caráter diferenciado. A equipe de supervisão iniciou um trabalho junto com o ambulatório para inserir Ismael em dispositivo de atenção intensiva, um hospital-dia. Isso de fato aconteceu, ele passou a freqüentar este dispositivo duas vezes na semana ainda internado. Seu comportamento era o mesmo: irritado, hostil com a equipe. O ambulatório sugeriu que ele morasse em um abrigo que não havia como retornar para casa. A avó chegou a dizer a ele que sua mãe havia morrido, mas isso não o convenceu.
Quando recebeu alta, não foi mais ao hospital-dia o que fez com que ele mais uma vez retornasse para a internação. Sua última internação lá foi em outubro de 2006, porém no ano de 2007, Ismael esteve internado em uma clínica conveniada em Jacarepaguá, por vários meses.
Hoje encontra-se aqui, em mais uma longa internação, nos colocando diante da mesma questão: o que fazer com Isaque? Em que se deter? Em sua história, em seu diagnóstico?
Segundo Henry Ey, em seu ‘Manual de Psiquiatria’, na seção denominada Doenças Mentais Crônicas, há um capítulo sobre Desequilíbrio Psíquico em que ele disserta sobre o que chama de Personalidades Psicopáticas, definindo-as: “Certas anomalias da personalidade conjugam, em proporções variáveis, de um indivíduo para o outro, a inadaptação à vida social, a instabilidade do comportamento e a facilidade de atuação, associadas, eventualmente, a distúrbios psiquiátricos diversos (depressão, excitação, bouffées delirantes, perversões sexuais, toxicomanias). Estes tipos de ‘borderline’ dão margem, com freqüência, a dificuldades consideráveis do ponto de vista médico-legal e da assistência. E não são menores as dificuldades para a compreensão da psiquiatria. Em geral, estando nos limites da psiquiatria e da criminologia, constituem um grupo de ‘casos difíceis’ sob todos os aspectos, e devemos nos esforçar para superar a simples descrição dos distúrbios e tentar descobrir em que eles se distinguem das estruturas neurótica, psicótica ou perversa”.
Parece-me que a história do distúrbio de Ismael já é um sintoma, um sintoma de que algo não vai bem desde sempre. Aos 2 anos batia com a cabeça na parede, aos 8 iniciou tratamento com neurolépticos, aos 15 teve sua primeira de uma série de internações. Os tios batiam muito nele no intuito de aprender o que é certo e errado, pois a mãe não conseguia educá-lo. Ela e uma irmã fazem tratamento psiquiátrico.
Ainda segundo Henry Ey, as diversas formas clínicas deste distúrbio, deste desequilíbrio psíquico, acarretam muitos problemas diagnósticos, pois elas tomam emprestado, precisamente, suas particularidades de alguns traços de estruturas vizinhas. Existem, portanto, 5 tipos dos quais destaco apenas 1, mas os cito: neurótico, psicótico, perverso (exibicionismo e voyerismo), epilético e delinqüência infanto-juvenil. Destaquei o segundo tipo, o psicótico, definido da seguinte maneira por Henry Ey: “É no adolescente que a psicopatia pode surgir como prefácio de uma evolução esquizofrênica ou como a ‘cicatrização’ de uma psicose infantil. Neste caso, o comportamento impulsivo aparece como a superfície de uma posição psicótica, tipo de ‘autismo apático’ com crises catatônicas, esteriotipias verbais e motoras sobre um fundo de permanente mau humor”. Isso descreve Ismael. Porém, coloco aqui, um outro ponto de vista, com pequenos detalhes colhidos através da escrita deste trabalho.
O que é esse constante pedido de internação? Isso falaria de certa impossibilidade de responder a uma convocação social, que neste momento é ‘se virar sozinho’, afirmação imposta por sua família? Em termos de autonomia? Ismael é tão autônomo assim? Ele afirma em alguns momentos que ‘sozinho não dá’.
Estamos diante de que estrutura? Em que se deter?
Hoje ele ainda está internado, com as mesmas complicações familiares.
Sua avó já está há 2 meses pagando um quarto para ele no Centro de Niterói e alegando: ‘eu banco mas não cuido’.
Este caso nos demonstra o tão complexo é uma internação psiquiátrica e o quanto é importante sempre tecermos um diálogo com outros pares para nos elucidarem sobre algumas questões. Ainda não temos clareza do diagnóstico de Ismael, mas uma coisa temos certeza: é um sujeito que precisa de nossa ajuda. Nosso ato é estar junto dele onde ele estiver, internado ou não.
Adriana Cabana de Q. Andrade

Nenhum comentário:

Postar um comentário