terça-feira, 7 de abril de 2009

"A História das Vozes" - Estudo Psicanalítico sobre um caso de psicose.

Monografia apresentada na conclusão do Curso de Especialização em Saúde Mental e Laço Social em nível de Residência em Saúde Mental [Universidade Federal Flumense e Hospital Psiquiátrico de Jurujuba] Agosto de 2004.
Resumo:
No trabalho produzido ao término de uma etapa de minha formação, procurei contemplar duas vertentes: o amadurecimento de uma clínica voltada ao campo da Saúde Mental, como resposta a uma passagem de 2 anos, como residente, pelo Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, e o aprofundamento teórico fruto de um estudo em parceria com a Universidade Federal Fluminense.
A articulação acadêmico-clínica permitiu a adoção da Psicanálise como o modelo teórico que permeou esta produção. Como referencial teórico utilizei-me da curiosidade de Sigmund Freud em relação a diferenciação estrutural entre neurose e psicose; de Jacques Lacan retirei a importância da observação dos fenômenos elementares da psicose, atribuindo às alucinações auditivas o testemunho da existência de um sujeito foracluído; em Marcel Czermark me apropriei de uma leitura psicanalítica do fenômeno psiquiátrico do automatismo mental.
A escolha deste caso específico, o caso de J., foi influenciado pelo meu encontro com este paciente enquanto ele ainda estava internado na enfermaria masculina do HPJ. Era setembro de 2002, primeiro ano de residência e J. já estava internado há 1 ano neste setor.
Mas por quê escolher J. e não X, Y ou Z ? J. causava-me curiosidade. Sua existência psicótica, aniquilada pelas vozes, fazia-me refletir sobre a brutal diferença de estrutura. Não poderia recuar, e diante de tal desafio, ao avançar, escrevi a ‘história das vozes’, ditada por ele.
O caso de J. é singular justamente por trazer à tona questões sobre a estrutura e o mecanismo da psicose, sobre a transferência, direção do tratamento e paternidade. Sua psicose demonstrou a aridez de uma subjetividade ora ‘morto’, ora ‘vivo’, ora ‘morto-vivo’.
Ao estudar seu vasto prontuário de 4 volumes, deparei-me com uma história de vida imersa em sofrimento, uma eterna luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’, entre a ‘vida’ e a ‘morte’. Este dualismo está registrado no capítulo 1 e é denominado por J. como ‘psicose da infância’ e por mim de automatismo mental, uma posição que ‘amortece’ o sujeito. Para dar conta desta questão, baseei-me na clínica do automatismo mental de Clérambault que teve sua origem na observação de casos onde o delírio ocupava um lugar mínimo em relação aos fenômenos alucinatórios. A psicose alucinatória crônica se decompõe, segundo Clérambault, em duas partes: um núcleo, que é o automatismo e uma superestrutura, que é o delírio, porém, não sendo esta última observada em J., uma vez que, ainda não é possível, para ele, construir algo que faça uma suplência.
J. apresentava, na primeira fase de sua doença, ou seja, na ‘psicose da infância’, um caráter neutro e automático que, por vezes, caracterizava-se simplesmente como a consciência de um estado de morbidade: acreditava ter câncer no estômago, aids, bolo na garganta, ‘falta de fezes’. Existiam fenômenos sutis de interferência que vinham perturbar o conteúdo do seu pensamento: o Diabo operava em seu corpo a mando de Deus que castigava-lhe causando-lhe as mais terríveis doenças. Tal fato trazia toda uma fenomenologia que poderia ser descrita como eco do pensamento, enunciação dos gestos e comentários dos atos. O mundo exterior fazia uma certa relação com ele onde se via tomado, comandado, infectado, amaldiçoado por algo que não denominava, ainda, como uma ‘voz’, mas também não era nomeado por ele de alguma forma. Era uma certeza de que seu corpo era um campo de batalha entre Deus e Diabo. Restava a ele, a atitude nobre, de retirar-se da batalha e tornar-se vassalo e espectador. Com isso, assumia a posição de ‘morto’ como em um jogo de buraco, estava lá, mas do lado de fora da partida. A idéia de morte subjetiva parece resolver o conflito, se levarmos em conta que Freud nos mostra ser esta a verdadeira satisfação pulsional. J. parece trazer essa discussão à tona quando pede para morrer, demonstra que a maior dificuldade da psicose é manter-se ‘vivo’. Uma ‘convulsão’ muda o fim da partida. As alucinações auditivas tornam-se francas e passam a denunciar um sujeito totalmente falido em suas bases simbólicas. Como diz o próprio J.: “a convulsão mudou tudo, antes eu não ouvia vozes, agora é só o que eu faço e não me acontece nada: eu nem morro, nem paro de ouvir estas vozes. Tem uma ‘psicose de agora’ que misturou-se com a ‘psicose da infância”.
A subjetividade psicótica demonstra uma série de ‘problemas’ e o principal deles diz respeito à foraclusão do Nome-do-Pai, aquele que delimita uma existência, aquele que introduz o ‘não”. Falamos, portanto, do ‘não-do-pai’. A psicose de J. testemunha um desespero do sujeito em encontrar aquilo que delimita o campo simbólico, aquele que ‘dê-limite’. As atuações de J., tantas vezes descritas de maneira minuciosa no capítulo 2, atestam uma tentativa, frustrada, de não ser mais invadido e tomado pelas vozes. É como se houvesse um desapego à palavra e um apego ao que é alucinatório.
J. pedia pela sua morte, pedia que eu o matasse, sozinho era impossível barrar a invasão da linguagem. Este pedido a mim direcionado, trazia em seu interior o peso da transferência. Quando nos propomos a trabalhar com pacientes psicóticos através da ética da psicanálise, deparamo-nos, muitas vezes, com um pedido de alívio do sofrimento, com uma impossibilidade estrutural de tomar para si as injunções que a vida lhe impõe. O manicômio talvez exista para ser o lugar onde a loucura possa habitar.
Meu objetivo no capítulo 2 foi dar valor à palavra do paciente, apostando que ele poderia reposicionar-se de forma diversa em sua estrutura. Deparei-me com o lugar que ele determinou para ‘Cabanita’, fazendo do ‘confessiotório’, um neologismo que significa exatamente a junção destes dois significantes: ‘confessar’ e ‘ambulatório’, um lugar onde ‘as vozes dão uma trégua’. Dar o testemunho de sua psicose é categorizá-la em duas: ‘psicose da infância’ e ‘psicose de agora’.
No capítulo 3 encaminho minhas reflexões no sentido de identificar o que ocorreu com J. para ser totalmente invadido pelas alucinações?
Arrisco dizer que as vozes tratam de sua subjetividade, atestam que há ‘vida’ naquele sujeito, precária, aniquilada, mas há. No campo de batalha, além de Deus e o Diabo, agora temos J. tentando manter-se ‘vivo’ dentro de sua total fragmentação. Seu pensamento, ao tornar-se auditivo, adquire características de exterioridade, mas falam dele: é sua comida que está intoxicada, é sua bebida que tem cocaína, é sua casa que está amaldiçoada, ‘é sua voz que traduz em palavras o que as vozes lhe dizem na sua cabeça’. Ao utilizar-se das palavras, J. afastava-se das vozes e de tudo o que elas lhe traziam: a passagem ao ato.
Sustentar-se no interior de seu automatismo seria morrer subjetivamente. Sustentar-se como sujeito seria estar diante de uma avalanche de significantes. Sustentar-se como delirante seria impossível para ele, suas tentativas demonstravam-se falhas. Apesar deste quadro clínico foi possível construir formas de vivência extra-muros, tais como: morar em um hotel, andar de ônibus sozinho, fazer acordos sociais e pedir que sua psicose fosse explicada ao mundo.
Contudo, ao tentar construir um delírio místico no ‘confessiotório’, J. não conseguiu sustentar-se, sendo novamente invadido pelas vozes que retornavam ao campo de batalha diária. J. estava de alta, porém 3 meses, foi o tempo suficiente para percebermos que ‘autonomia’ ainda não era um significante de seu campo simbólico. J. retorna para a internação e encontra-se lá até os dias de hoje. Hoje, 2009, é morador do Hopsital em um dispositivo denominado de Albergue.
Das minhas reflexões e impasses, pude concluir que, neste caso, ‘psicose da infância’ e ‘psicose de agora’ são duas forças em oposição: morte e subjetivação, automatismo mental e alucinações auditivas.
O que J. ensinou-me é que trabalhar com a psicose é trabalhar sem esperanças, é trabalhar com a ética e o respeito de que ali apresenta-se um sujeito, esteja ele como estiver, ‘vivo’ ou ‘morto’.
A ‘história das vozes’, portanto, pode ser resumida assim: eterna luta entre o bem e o mal, entre a morte e a subjetivação, entre Deus e o Diabo em seu corpo, entre o dentro e o fora da instituição.
Adriana Cabana de Q. Andrade

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