quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sobre uma Ótica ...

Vilmar tem 44 anos e 19 de “vida psiquiátrica”, como ele mesmo se apresenta. Nossa intenção em trazer este caso a discussão é uma precopupação com o destino de sua doença.

O Hospital de Jurujuba esteve presente, praticamente, nestes 19 anos de psiquiatria junto com Vilmar. Escolho fazer um recorte do caso para poder avançar nas questões que prentendo trazer.
A apresentação de Vilmar para a psiquiatria e, portanto, para a internação, é restrita a um diagnóstico de Transtorno Bipolar do Humor e sempre com sintomas hipomaníacos e/ou maníacos: “vinha uma euforia, uma megalomania, queria comprar tudo, minha família achava que eu estava drogrado”. Porém, Vilmar nos diz que sua doença não se iniciou desta maneira: “fiquei deprimido, não queria ver ninguém, tive perda de memória, não queria sair de casa, parei a faculdade de Educação Física ... depois que veio a euforia”. E era nessa euforia que nos encontrávamos com Vilmar nas internações: sempre muito exaltado, falando alto, inadequado, dizendo que tinha várias profissões, que tinha muito dinheiro, muitos imóveis, fazia muitas dívidas, mas, mesmo assim, parecia ser amistoso. Entretanto, Vilmar logo respondia ao tratamento, as medicações tinham importância fundamental em sua organização e ele logo voltava para a vida: para sua casa (onde morava sozinho e sustentava-se bem com o que ganhava em seu trabalho) e para seu trabalho (que há mais de 10 anos sustentava um vínculo importante). Sobre seu tratamento, ele nunca teve uma regularidade formal, mas reconhecia, e ainda reconhece, a Policlínica Carlos Antonio da Silva como sendo seu local de tratamento. Não era regular, porém ele sempre dava um jeito de informar ao ambulatório como ele estava: se estava bem, em crise ou recém-saído de uma internação.

Vilmar nos parece ser um daqueles pacientes que conseguem manter-se na vida: possui vínculos de trabalho, afetivos, sociais ... basta estar em tratamento que as coisas funcionam relativamente bem. Mas não é mais assim. Há aproximadamente 1 ano temos recebido este paciente para recorrentes internações e percebemos, com muita clareza, que algo não caminha nada bem: o que está acontecendo que, se antes havia um hiato de 2 a 3 anos sem internações, agora ele não tem conseguido ficar 20 dias afastado de nossa enfermaria? É a partir deste ponto que quero partir com ênfase e dando destaque a fala do próprio Vilmar.

Em dezembro de 2008 recebemos Vilmar para mais uma internação. Como muitos da enfermaria já conheciam o caso, creio que foi unânime pensar que seria uma internação breve e como as outras, que ele logo melhoraria e voltaria ao trabalho. Inclusive, “voltar ao trabalho” era parte de seu projeto terapêutico: ele voltava ao trabalho ainda internado e isso o ajudava a retomar sua vida e sair do excesso que a mania lhe proporcionava. Mas, nos demos conta que estávamos diante de um outro Vilmar. Havia uma mudança de quadro dentro de sua habitual apresentação: estava francamente paranóide, explicava o que culminou sua internação alegando que tinha alguém querendo entrar em sua casa, que havia um homem de moto que a rodeava, sentiu-se muito ameaçado. Vilmar já estava diferente, seu olhar era diferente, o jeito com que nos tratava era diferente, estava muito hostil, por vezes inabordável e agressivo, chegando a agredir alguns pacientes e ameaçar nossa equipe.

Durante a internação, questionando porque o paciente não estava em uso de medicação, soubemos que ele estava fazendo parte de um estudo para a testagem de uma nova droga para o tratamento de transtorno bipolar do humor no Hospital Mário Kroeff, no Rio de Janeiro. A drogra em questão era uma associação de Aripiprazol com Ácido Valpróico. Mas, por que estava sem medicações? Como toda experiência, se coloca algo e se retira este mesmo algo. Ele estava em uso desta associação há aproximadamente 2 anos. Estava bem, sem intercorrências ou internações. Segundo ele: “estava vendo nesta pesquisa e nessa medicação uma possibilidade de ficar livre de vez desta coisa psiquiátrica”. Após um período, foi preciso retirar sua medicação e fazer outra associação com carbonato de lítio, o que culminou em uma internação. Ele demorou um pouco pra melhorar, mas isso ainda não chamava tanto nossa atenção para algo novo de fato. Isso passou a acontecer quando Vilmar retornou para a internação apenas 1 mês depois de ter saído e com um agravamento dos sintomas paranóides e certa ideação autodestrutiva: dizia que não queria mais saber dessa vida de psiquiatria, que queria comprar uma arma e atirar em si mesmo e que se fosse para viver como doido ele preferia morar no hospital.

Começamos a estar diante de um novo Vilmar. Ele não conseguiu voltar para o Hospital Mario Kroeff, desejo de sua família que continuasse na pesquisa, não conseguiu retomar plenamente o trabalho passando a ficar difícil sua convivência lá, um local que pessoas o acolhiam mesmo em crise e sua relação com a família passa a se tornar insustentável e precária. Nesta internação, portanto, iniciamos com a Policlínica Carlos Antonio da Silva um trabalho de maior proximidade com o paciente, incluisive com a entrada da AD Raquel no caso. Durante esta internação, eu sinalizava para a equipe da masculina uma impressão que Vilmar passava pra mim naquilo que dizia respeito a sua autonomia: não o via mais como sendo tão autônomo, como capaz de cuidar de si sozinho, de escolher seguir seu tratamento por conta própria, de mediar suas relações na vida sem o intermédio de um terceiro. Era claro que não conseguia cuidar-se mais sem que seus amigos e família estivessem por perto. Porém, não foi possível para essas pessoas seguirem este cuidado, parece não haver brechas para isso, algo aconteceu na relação deles com o paciente que tudo passou ficar insuportável. A saída desta internação foi muito difícil: a irmã recusava-se a comparecer no hospital com a alegação que Vilmar a teria agredido e ela estaria com muito medo dele; o cunhado que, antes se fazia presente, passou a se afastar cada vez mais e passou a ter uma relação muito tensa com a equipe da enfermaria, muitas vezes não concordando com o momento da alta e burlando os encontros e as combinações, deixando Vilmar totalmente desamparado. Com muita dificuldade ele saiu, mas 20 dias depois retronou.
Este retorno parece ter sido marcado por algo definitivo na doença de Vilmar: chegou na emergência após ter tido uma discussão com seu patrão e tê-lo agredido seriamente jogando-o contra a vitrine da loja em que trabalhava. Este momento, a meu ver, foi um rompimento com laços de sustentação que, talvez, tenham que ser rearranjados para uma tentativa de retomada, mas o próprio Vilmar diz: “não tem mais clima para trabalhar lá ... acabou”.

Vilmar é outro paciente. Tem estado de modo diverso. Nem delirante, nem perseguido, nem maníaco. Apenas “enjoado”, significante usado por ele em vários momentos para dizer como se sente em mais uma internação. Vilmar se compadece de si próprio: “estou cansado de ser doente, a vida de psiquiatria é pior que de presidiário ... presidiário cumpre a pena e vai embora, maluco fica pra sempre estigmatizado ... minha vida não se derenrola, só anda pra trás, estou cansado e tentando ver onde vou me encaixar”. Ele tem falado em sentir-se ameaçado, desafiado pelas pessoas e pensa em comprar uma arma para se defender disso. Acha, de fato, que as pessoas estão confrontando mais ele. Justifica-se dizendo que se elas fossem mais sutis ele não explodiria. Em uma ocasião em que estava com Thaiana (estagiária), estava lendo uma letra de música e parou na seguinte frase: “... quando eu estiver louco, sutilmente se afaste” e conclui: “é isso que as pessoas não conseguem fazer, elas tem que se fastar de mim quando estou com raiva ... dá pra perceber, as minhas veias enchem”.

Minha questão gira em torno de uma nova posição que ele tem encontrado em sua doença. Este “enjoo” fala de uma posição melancólica? Quando pergunto melhor isso pra ele, do que se trata esse enjoo, ele não consegue explicar, mas tenta fazê-lo buscando localizar quando isso aconteceu e afirma que foi depois da pesquisa que passou a sentir isso. Achava que com aquele experimento teria “liberdade” e agora percebeu que se frustrou mais uma vez: “não consegui construir nada, não tenho família, não terminei minha faculdade”.

Penso em poder localizar em que ponto este “enjoo” fala de uma causa e não de um efeito. Não é porque ele está internado recorrentemente que ele fica enjoado, penso ser o inverso, é o enjoo que causa nele algo que o faz romper com a vida que levava e parece ter transformado a posição dele no mundo. Ele me perguntou: “que graça tem a vida agora?”. Parece que o experimento fez dele o próprio objeto. Minha questão está em torno desta condição BI-polar de Vilmar: em um primeiro momento ele era tomado pelo objeto, esse objeto que o deixava maníaco, eufórico, deslumbrado e agora, me parece que assumiu, a partir da pesquisa, uma posição de ser o próprio objeto, de ser um dejeto que não tem razão de viver, que não tem propósito, planos, futuro. As duas posições são graves, mas a segunda me parece falar de uma mortificação, de uma conformação a uma posição de objeto.

Diante disso, a que serve a internação? Demovê-lo de uma posição ou de outra? Ele diz que temos medo de dar alta pra ele? Medo de que ele faça alguma “merda” maior. Não duvido. É preciso saber de que Vilmar estamos tratando agora.
Adriana Cabana de Q. Andrade.
Setembro/2009

Um notável ignorado.

Falaremos de “Ig”, paciente internado em nossa enfermaria desde 13/11/2006 e assim “batizado” por nós e por quem atende por esse nome quando solicitado. Nossa angústia de não saber como chamá-lo, transformou a burocracia em nome: Ignorado ... “Ig”. Ele é branco e aparenta ter entre 20 e 25 anos.

Chegou ao SRI em novembro de 2006, trazido por ambulância da Ponte Rio-Niterói pois estava andando naquela via, sentido Rio de Janeiro, colocando-se em risco. Estava sem nenhum documento ou qualquer identificação. Encontrava-se bastante assustado e segurava um papel de firma de empréstimo (BMG). Trajava camisa branca com o nome “Forja Steel – São Paulo”, o que nos fez tentar imediatamente entrar em contato com esse local, mas suas características não foram reconhecidas por ninguém de lá.
Não cooperava com o exame físico realizado por médica da emergência, não permitindo que ela o tocasse, e pareceu amedrontado quando aferiram sua pressão arterial. Foi encaminhado a nossa enfermaria de observação onde foi alimentada e feita sua higiene corporal. Tomou banho só, mas necessitou de auxílio para tal.
Durante o período em que permaneceu na observação na emergência, seu comportamento oscilava em permanecer em seu leito todo coberto dos pés a cabeça ou tentando fugir do hospital, tendo que ser impedido por nossa equipe, o que o fazia reagir de maneira ativa, oferecendo resistência a retornar e tentando retirar suas contenções com a boca, mordendo-as. Nos momentos em que estava sendo contido, gritava muito, mas não conseguia pronunciar uma palavra, embora haja relatos de já ter dito “tio/tia”, “banho”, “tênis”, “biscoito”.
Permaneceu durante todo o tempo em mutismo. Em determinados momentos chegamos a suspeitar de atividade alucinatória mas isso não ficou claro naquele momento, pois ele apresenta sinais e sintomas tanto de um quadro de retardo como de autismo ou uma psicose infantil, o que nos faz não ter, até hoje, alguma concordância em termos de diagnóstico. Tendemos ao lado dos transtornos infantis.
Observamos importante episódio que se repetiu no SRI e no início de sua internação na enfermaria masculina: assustava-se e demonstrava certo medo, chegando a sair da sala de TV, ao passar reportagens sobre um caso de seqüestro. No início de sua permanência na enfermaria masculina, ficava deambulando perto da porta de entrada e no primeiro sinal de abertura da porta, ele fazia tentativas de sair, o que hoje não ocorre mais. Hoje, quando ele deseja sair, pega nossa mão e leva até a porta e quando dissemos para que ele espere, que ainda não é hora de sair, ele consegue aguardar.
Atualmente, “Ig” come cozinho, escolhe o que quer comer nas refeições: quando não gosta de algo empurra a mão da copeira para que ela não coloque em seu prato; aproxima-se da equipe de modo mais adequado, embora apresente comportamento bastante inadequado em alguns momentos, como se masturbar no pátio externo do hospital, sem importar-se com a presença de outras pessoas, fazendo tal ato de maneira bizarra: deitando-se no chão, esfregando-se e sem utilizar as mãos.
Diante disso, tomamos providências como encaminhar sua foto para APAE-RJ, FIA, Pestalozzi, Polícia Civil e Federal, para o cadastro de pessoas desaparecidas, Instituto Felix Pacheco, de onde foram recolhidas suas digitais para exame papiloscópico, sem nenhum sucesso.
Até então, nenhuma palavra havia, de fato sido, pronunciada. Em alguns momentos, até achávamos que ele havia dito algo pelos seus balbucios e barulhos, mas nada era muito claro. Poderia ser nosso desejo para que ele falasse e não tínhamos clareza do que era dito.
Em determinado momento de sua internação, Dr. Marcelo opta pela retirada de toda a medicação. Estava em uso de antipsicóticos e benzodiazepínicos, permanecendo somente com o benzodiazepínico. O que observamos é que “Ig” passou a circular mais pela enfermaria, buscar mais nossa equipe, demonstrar o que queria. Corria pela enfermaria, rindo e colocando as mãos nos ouvidos naquilo que era uma franca atitude alucinatória.
Nossa enfermaria, então, entra em obras. Os quartos foram pintados, as camas foram trocadas de lugar. No dia em que o pintor estava pintando o quarto em que ficava sua cama, ele não permitiu que o funcionário subisse na escada: fechava a escada e pegava a mão do pintor e o retirava do quarto. Tentamos intervir, sempre lhe direcionando a palavra, mas ele foi irredutível e não permitia nossa aproximação na escada. Foi preciso retirá-lo, o que reagiu de maneira veemente, fazendo movimento ao contrário. Foi preciso utilizar mais força ao que “Ig” falou: “me solta, me larga ... me solta, me larga!”. Após o susto tomado por nossa equipe porque ele, de fato, falou algo, ele precisou ser medicado e permaneceu mais tranqüilo.
A partir deste dia, “Ig” passou a falar mais, mas nunca seu nome. Dizia “biscoito” quando saía da enfermaria, apontava para a porta e dizia “lá fora” e fazia o mesmo movimento, feito até hoje: sai correndo pelo hospital (e a equipe atrás), vai até o SRI, entra na enfermaria de observação, às vezes vai até o último leito e volta. Movimento sempre acompanhado de risos e corpo trêmulo.
Nesses momentos em que ele falava algo, sempre perguntávamos seu nome, onde morava, quantos anos tinha. Um verdadeiro questionário: “se ele fala vai ter que dizer o nome”, era o que desejávamos dele. Isso se tornou desastroso. Ele passou a responder à nossa convocação, mas de uma outra maneira: masturbando-se! Todos os dias, várias vezes ao dia lá estava “Ig” deitado no corredor da enfermaria, no posto de enfermagem, na sala dos técnicos, na sala de TV, no refeitório, no pátio externo, no SRI. Sempre na presença de alguém, ou melhor, sempre na circulação de alguém, nunca sozinho. Isso que antes entendíamos como uma possibilidade mínima de se mostrar como sujeito, passou a ser um problema constrangedor, mas para a equipe, porque para “Ig”, a sensação que temos é que, neste momento, parece que ele está só. Frente à isso, passou a ficar mais agitado, mais agressivo, o que fez com que optássemos pelo retorno da medicação antipsicótica.
Porém, ao mesmo tempo em que pensamos que ele está só em seu mundinho, somos surpreendidos por outro episódio: há duas semanas atrás, a equipe estava na sala de coordenação e escutou uma batida forte na forte. Quando fomos ver o que era, encontramos “Ig” correndo pela enfermaria muito assustado e acuado. Fomos até ele para saber o que teria acontecido e ele verbalizava, nervoso, gaguejando: “ca-ca-ra-ca ... mar-mar-mar-ce-lo!” Imediatamente, tomados pelo desejo de que ele repetisse e nos dissesse o que teria ocorrido, perguntávamos: “Marcelo? Você é Marcelo? Marcelo é seu nome? Quem é Marcelo?” Mas ele nada mais falou. Foi levado para a sala de coordenação em mais uma tentativa para que ele falasse, mas ele nada disse, apenas aceitou os biscoitos que lhe foram oferecidos. Neste mesmo dia, a equipe de enfermagem nos comunica que a cama de “Ig” estava junto da cama de outro paciente que tem “Marcelo” em seu nome.


Diante disso, inúmeras questões nos suscitam:
1.Questionamos sua permanência em uma enfermaria de agudos. Até onde a internação tem, de fato, uma função em seu caso?
2. De que caso se trata? É um autismo, uma psicose infantil, um quadro de retardo? Com que clínica estamos lidando. Em determinado momento recorremos à equipe do CAPS I, não por acreditar que “Ig” seja uma criança ou um adolescente, mas para nos auxiliar na condução do caso, já que é a clínica que mais se aproxima deste caso. O que ficou claro, é que um trabalho já estava em andamento na enfermaria e era importante que outras pessoas não entrassem neste circuito, para que o vínculo dele com algumas pessoas na enfermaria, vínculo já preservado, pudesse ser fortalecido.
3.Mas, e agora? O que fazer? Pra onde referenciá-lo? Pra onde encaminha-lo? Para que moradia, para que tratamento?

Um ano após a apresentação deste trabalho, Luiz Carlos, nosso "Ig", foi reconhecido por nós após divulgação de sua foto no jornal Extra na coluna 'Crianças Desaparecidas'. Um acompanhamento estava em andamento e ele pôde, após termos chamado-o pelo nome verdadeiro, responder com um lindo sorriso e ser entregue a sua família de origem. Morador de Jacarepaguá, foi encaminhado para tratamento na rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro. Seu desaparecimento foi em decorrência de um minuto de descuido de sua carinhosa mãe com o portão da humilde casa.

Adriana Cabana de Q. Andrade. (Junho/2007)