quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um notável ignorado.

Falaremos de “Ig”, paciente internado em nossa enfermaria desde 13/11/2006 e assim “batizado” por nós e por quem atende por esse nome quando solicitado. Nossa angústia de não saber como chamá-lo, transformou a burocracia em nome: Ignorado ... “Ig”. Ele é branco e aparenta ter entre 20 e 25 anos.

Chegou ao SRI em novembro de 2006, trazido por ambulância da Ponte Rio-Niterói pois estava andando naquela via, sentido Rio de Janeiro, colocando-se em risco. Estava sem nenhum documento ou qualquer identificação. Encontrava-se bastante assustado e segurava um papel de firma de empréstimo (BMG). Trajava camisa branca com o nome “Forja Steel – São Paulo”, o que nos fez tentar imediatamente entrar em contato com esse local, mas suas características não foram reconhecidas por ninguém de lá.
Não cooperava com o exame físico realizado por médica da emergência, não permitindo que ela o tocasse, e pareceu amedrontado quando aferiram sua pressão arterial. Foi encaminhado a nossa enfermaria de observação onde foi alimentada e feita sua higiene corporal. Tomou banho só, mas necessitou de auxílio para tal.
Durante o período em que permaneceu na observação na emergência, seu comportamento oscilava em permanecer em seu leito todo coberto dos pés a cabeça ou tentando fugir do hospital, tendo que ser impedido por nossa equipe, o que o fazia reagir de maneira ativa, oferecendo resistência a retornar e tentando retirar suas contenções com a boca, mordendo-as. Nos momentos em que estava sendo contido, gritava muito, mas não conseguia pronunciar uma palavra, embora haja relatos de já ter dito “tio/tia”, “banho”, “tênis”, “biscoito”.
Permaneceu durante todo o tempo em mutismo. Em determinados momentos chegamos a suspeitar de atividade alucinatória mas isso não ficou claro naquele momento, pois ele apresenta sinais e sintomas tanto de um quadro de retardo como de autismo ou uma psicose infantil, o que nos faz não ter, até hoje, alguma concordância em termos de diagnóstico. Tendemos ao lado dos transtornos infantis.
Observamos importante episódio que se repetiu no SRI e no início de sua internação na enfermaria masculina: assustava-se e demonstrava certo medo, chegando a sair da sala de TV, ao passar reportagens sobre um caso de seqüestro. No início de sua permanência na enfermaria masculina, ficava deambulando perto da porta de entrada e no primeiro sinal de abertura da porta, ele fazia tentativas de sair, o que hoje não ocorre mais. Hoje, quando ele deseja sair, pega nossa mão e leva até a porta e quando dissemos para que ele espere, que ainda não é hora de sair, ele consegue aguardar.
Atualmente, “Ig” come cozinho, escolhe o que quer comer nas refeições: quando não gosta de algo empurra a mão da copeira para que ela não coloque em seu prato; aproxima-se da equipe de modo mais adequado, embora apresente comportamento bastante inadequado em alguns momentos, como se masturbar no pátio externo do hospital, sem importar-se com a presença de outras pessoas, fazendo tal ato de maneira bizarra: deitando-se no chão, esfregando-se e sem utilizar as mãos.
Diante disso, tomamos providências como encaminhar sua foto para APAE-RJ, FIA, Pestalozzi, Polícia Civil e Federal, para o cadastro de pessoas desaparecidas, Instituto Felix Pacheco, de onde foram recolhidas suas digitais para exame papiloscópico, sem nenhum sucesso.
Até então, nenhuma palavra havia, de fato sido, pronunciada. Em alguns momentos, até achávamos que ele havia dito algo pelos seus balbucios e barulhos, mas nada era muito claro. Poderia ser nosso desejo para que ele falasse e não tínhamos clareza do que era dito.
Em determinado momento de sua internação, Dr. Marcelo opta pela retirada de toda a medicação. Estava em uso de antipsicóticos e benzodiazepínicos, permanecendo somente com o benzodiazepínico. O que observamos é que “Ig” passou a circular mais pela enfermaria, buscar mais nossa equipe, demonstrar o que queria. Corria pela enfermaria, rindo e colocando as mãos nos ouvidos naquilo que era uma franca atitude alucinatória.
Nossa enfermaria, então, entra em obras. Os quartos foram pintados, as camas foram trocadas de lugar. No dia em que o pintor estava pintando o quarto em que ficava sua cama, ele não permitiu que o funcionário subisse na escada: fechava a escada e pegava a mão do pintor e o retirava do quarto. Tentamos intervir, sempre lhe direcionando a palavra, mas ele foi irredutível e não permitia nossa aproximação na escada. Foi preciso retirá-lo, o que reagiu de maneira veemente, fazendo movimento ao contrário. Foi preciso utilizar mais força ao que “Ig” falou: “me solta, me larga ... me solta, me larga!”. Após o susto tomado por nossa equipe porque ele, de fato, falou algo, ele precisou ser medicado e permaneceu mais tranqüilo.
A partir deste dia, “Ig” passou a falar mais, mas nunca seu nome. Dizia “biscoito” quando saía da enfermaria, apontava para a porta e dizia “lá fora” e fazia o mesmo movimento, feito até hoje: sai correndo pelo hospital (e a equipe atrás), vai até o SRI, entra na enfermaria de observação, às vezes vai até o último leito e volta. Movimento sempre acompanhado de risos e corpo trêmulo.
Nesses momentos em que ele falava algo, sempre perguntávamos seu nome, onde morava, quantos anos tinha. Um verdadeiro questionário: “se ele fala vai ter que dizer o nome”, era o que desejávamos dele. Isso se tornou desastroso. Ele passou a responder à nossa convocação, mas de uma outra maneira: masturbando-se! Todos os dias, várias vezes ao dia lá estava “Ig” deitado no corredor da enfermaria, no posto de enfermagem, na sala dos técnicos, na sala de TV, no refeitório, no pátio externo, no SRI. Sempre na presença de alguém, ou melhor, sempre na circulação de alguém, nunca sozinho. Isso que antes entendíamos como uma possibilidade mínima de se mostrar como sujeito, passou a ser um problema constrangedor, mas para a equipe, porque para “Ig”, a sensação que temos é que, neste momento, parece que ele está só. Frente à isso, passou a ficar mais agitado, mais agressivo, o que fez com que optássemos pelo retorno da medicação antipsicótica.
Porém, ao mesmo tempo em que pensamos que ele está só em seu mundinho, somos surpreendidos por outro episódio: há duas semanas atrás, a equipe estava na sala de coordenação e escutou uma batida forte na forte. Quando fomos ver o que era, encontramos “Ig” correndo pela enfermaria muito assustado e acuado. Fomos até ele para saber o que teria acontecido e ele verbalizava, nervoso, gaguejando: “ca-ca-ra-ca ... mar-mar-mar-ce-lo!” Imediatamente, tomados pelo desejo de que ele repetisse e nos dissesse o que teria ocorrido, perguntávamos: “Marcelo? Você é Marcelo? Marcelo é seu nome? Quem é Marcelo?” Mas ele nada mais falou. Foi levado para a sala de coordenação em mais uma tentativa para que ele falasse, mas ele nada disse, apenas aceitou os biscoitos que lhe foram oferecidos. Neste mesmo dia, a equipe de enfermagem nos comunica que a cama de “Ig” estava junto da cama de outro paciente que tem “Marcelo” em seu nome.


Diante disso, inúmeras questões nos suscitam:
1.Questionamos sua permanência em uma enfermaria de agudos. Até onde a internação tem, de fato, uma função em seu caso?
2. De que caso se trata? É um autismo, uma psicose infantil, um quadro de retardo? Com que clínica estamos lidando. Em determinado momento recorremos à equipe do CAPS I, não por acreditar que “Ig” seja uma criança ou um adolescente, mas para nos auxiliar na condução do caso, já que é a clínica que mais se aproxima deste caso. O que ficou claro, é que um trabalho já estava em andamento na enfermaria e era importante que outras pessoas não entrassem neste circuito, para que o vínculo dele com algumas pessoas na enfermaria, vínculo já preservado, pudesse ser fortalecido.
3.Mas, e agora? O que fazer? Pra onde referenciá-lo? Pra onde encaminha-lo? Para que moradia, para que tratamento?

Um ano após a apresentação deste trabalho, Luiz Carlos, nosso "Ig", foi reconhecido por nós após divulgação de sua foto no jornal Extra na coluna 'Crianças Desaparecidas'. Um acompanhamento estava em andamento e ele pôde, após termos chamado-o pelo nome verdadeiro, responder com um lindo sorriso e ser entregue a sua família de origem. Morador de Jacarepaguá, foi encaminhado para tratamento na rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro. Seu desaparecimento foi em decorrência de um minuto de descuido de sua carinhosa mãe com o portão da humilde casa.

Adriana Cabana de Q. Andrade. (Junho/2007)


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