sexta-feira, 10 de abril de 2009

Algumas considerações sobre o desafio da desinstitucionalização.

* Texto apresentado em seminário interno na enfermaria masculina de hopsital psiquiátrico no município de Niterói. Nomes dos pacientes são fictícios.

A equipe da enfermaria masculina tem retomado uma importante afirmação: “não podemos esquecer que este lugar é para pacientes agudos”.
Por pacientes agudos entendemos aqueles que estão em crise, em intensa vivência delirante-alucinatória, desorganizados, em risco iminente de vida por sua própria condição subjetiva. Nosso trabalho, através de instrumentos de cada especialidade, visa debelar a crise, tentar afastar o sofrimento de nossos pacientes, fazer com que a realidade psíquica deles não seja tão avassaladora como se apresenta. Com este desafio parcialmente concluído, digo parcialmente porque nossa intenção não é o pleno reestabelecimento de uma unidade anteriormente cindida, mas um certo acolhimento para o sofrimento que nos é apresentado, entendemos que a rede extra-hospitalar tem função primordial de assumir os cuidados e passar a auxiliar os pacientes no difícil trato social, sempre com nosso respaldo e levando em conta que nosso trabalho é em rede, ou seja, quando um paciente está em nossa enfermaria, isso não significa que ele “é nosso paciente”, ele está sob nossos cuidados, mas ele é de responsabilidade de todos que o cercam, incluindo sua família, e o que procuramos seguir é uma direção única de trabalho com os nossos parceiros da rede.
Entretanto, esse circuito não é simples assim. Como tratamos de sujeitos, e ainda psicóticos, nosso trabalho é permeado por inúmeras questões, situações e impedimentos que, muitas vezes, nos fazem recuar em uma visita, uma licença, uma alta e até em um projeto terapêutico.
Dos nossos 35 leitos rotativos temos 5 casos com características outras que não o objetivo de debelar a crise: são casos de grave institucionalização, casos sem suporte social algum, casos para vinculação em dispositivos extra-hospitalares e, nesta seqüência de casos com características outras, Joaquim, um conhecido de nossa instituição por já ter vivido muitos anos dentro do hospital mas que, neste momento, está em crise, uma crise familiar que invariavelmente, torna-se uma crise psicótica grave.
Joaquim dispensa, neste momento, uma apresentação detalhada de sua história de vida, pois meu objetivo aqui não é esse, mas basta citar uma frase sua que tem repetido nos últimos meses: “tenho 40 anos de psiquiatria, estou cansado disso tudo!”. Joaquim é esquizofrênico com sintomas já residuais. Ele conta que sua primeira internação foi quando era muito jovem, quase uma criança e que desde então sua vida é “viver dentro do hospital”.
Como já foi dito anteriormente Joaquim morou muitos anos dentro deste hospital e isso lhe trouxe vários prejuízos inegáveis como sua forte ligação com a instituição e com isso a proteção que esta lhe oferece: proteção de si mesmo, proteção do laço social extra muros e, atualmente, proteção de sua família, recorte fundamental nesta explanação e ponto de partida para minha proposta de discussão. Por outro lado, os ideais do processo de desinstitucionalização nos fizeram refletir que a aposta em uma vida fora do hospital, se possível, no seio familiar, é o que nos norteia para um trabalho de busca de inclusão social.
Após anos de moradia no Albergue, uma aposta foi feita para que Joaquim saísse do hospital e fosse acolhido no Programa de Residência Terapêutica (RT) de nosso município. Porém, seu quadro clínico marcado por explosões comportamentais, auto e heteroagressvidade, confusões e vivências delirantes, fizeram com que sua permanência neste dispositivo se tornasse inviável. Em dezembro de 2007, ainda em período de adaptação nesta nova moradia – RT – Joaquim vivia momentos de muita angústia, não diferentes dos que apresentava no Albergue, ou durante sua vida toda, pois afinal, não deve ter sido por outro motivo além da impossibilidade de circular no trato social que permaneceu durante tanto tempo em nossa instituição. Neste período de adaptação na RT, alegava que estava difícil viver um uma casa com outras pessoas, compartilhar as coisas com outros. Quando questionado que isso não era muito diferente do que vivenciava no Albergue ele respondia: “mas lá não é hospital, é casa!”, como se dentro do hospital algo pudesse mediar sua impossibilidade de exercer-se no trato social, como se aqui dentro do hospital fosse permitido que João encarnasse a afirmação: “se estou aqui é porque não posso estar lá fora”. As mesmas afirmações, o mesmo queixume, aquilo que sempre dizemos “o Joaquim é assim mesmo”, continuava a repetir-se: ele dizia que queria morrer, que iria jogar-se na frente de um ônibus, queimava-se de cigarros, entrava em constantes conflitos com outros moradores e, em especial com Maria, para quem arremessou um cabo de vassoura e a ameaçou de morte. Este episódio culminou em uma internação em nossa enfermaria no fim de 2007 que durou aproximadamente um mês, com retorno para a própria Residência Terapêutica. Durante tal internação, no início, Joaquim alegava que “queria voltar para o Albergue, e caso isso não fosse possível iria morar com seu tio em São João de Meriti, que se voltasse para a Residência, iria colocar fogo em tudo, inclusive em si próprio”, Era hostil com a equipe e com outros pacientes, quebrou vários objetos da enfermaria como cadeiras do refeitório e a maçaneta da porta da Terapia Ocupacional, além de objetos pessoais, como rádios que ele mesmo comprava. Recusava suas idas ao CAPS, assim como algumas refeições, passando a fumar mais e beber muito café. Vale lembrar que o paciente é hipertenso e diabético. Sua melhora passou a ficar evidente quando mostrou-se mais adequado na enfermaria e no CAPS, queixando-se menos e solicitando seu retorno para a Residência, alegando que “iria deixar a Maria para lá!”. Após retomar sua freqüência no CAPS, e sua permanência na RT, Joaquim saiu de alta no dia 22/01/2008.
Retornou a emergência no dia 25 deste mesmo mês, ou seja, 3 dias depois: “(...) as discussões com outros dois moradores são freqüentes e as ameaças de tirar a vida de outro também. Após decisão das equipes (RT/Hospital/CAPS) o paciente foi retirado da casa e encaminhado a emergência com orientação de permanecer internado no SIM. João mostra-se calmo, cooperativo, mas diz que foi ‘expulso’ da Residência. Conta que desde que foi morar lá, recebia ameaças da paciente Maria” (SIC prontuário). É importante ressaltar que a decisão de não permanecer mais no Programa de Residência Terapêutica, estendeu-se a mais duas outras moradoras, incluindo Maria a quem Joaquim afirmava ser a causadora de todos os seus males.
Com isso, um novo projeto terapêutico direcionado pelo CAPS, apontava uma possibilidade de retorno à família, que neste momento era a filha, o genro e dois netos. Este trabalho, portanto, foi iniciado pelas duas equipes, CAPS e Enfermaria.
Apesar de sua constante oscilação, o trabalho literal ‘de volta para casa’ parecia caminhar para frente. A psicóloga do CAPS iniciou um trabalho importantíssimo diretamente no território de Joaquim: visitas na casa da filha, licenças assistidas, construção de um quarto para Joaquim nesta casa onde teria seus próprios objetos assim como sua privacidade. Parece que foram gastos cerca de R$2.000,00, do dinheiro dele, para que este projeto fosse viabilizado. Porém, como disse anteriormente, impedimentos nos fazem recuar nesta clínica: a sogra da filha de Joaquim vendeu a casa onde ele iria morar e onde havia construído, materialmente e subjetivamente, um lugar para si. Seus pertences foram suprimidos assim como a confiança que João depositava em sua família.
Joaquim, aquele que durante anos teve um lugar institucionalizado, quando começa a vislumbrar a possibilidade de um novo lugar subjetivo, tudo parece ruir, ou melhor, não há nada o que ruir porque não há mais lugar. No decorrer deste processo, sua psicóloga afasta-se do CAPS por uma licença maternidade e Joaquim recebe outra notícia: sua filha fez um empréstimo consignado no banco onde esse valor ainda nos é desconhecido, mas sabemos que ele passa a receber apenas R$180,00 por mês.
A resposta que Joaquim dá a esse momento é de muito sofrimento: “me deixa morrer logo então, me dá chumbinho, deixa eu sair pra me afogar na praia, não vale mais a pena viver”. Passa a beber muito café com açúcar, comer muitas balas, fumar compulsivamente, não alimentar-se, recusar medicações e a aferição da pressão.
Este é o Joaquim! Mas não me conformo com esta afirmação!
Há um dado de realidade neste momento: ele está desacreditado em sua família, está novamente sem lugar material e subjetivo e isso se reflete em suas palavras de agora: “minha filha só quer meu dinheiro ... meu genro bate nela e nas crianças, a próxima vez que ele fizer isso eu mato ele ... eles são ingratos!”
Diante desta impossibilidade real de morar com a filha porque, com a venda da casa, também não tem um lugar para ela, a direção continuou sendo a referência familiar, mas a casa da mãe. Ele parece aceitar, mas algo novo na sintomatologia de Joaquim, pelo menos para nós na equipe da enfermaria, começa a surgir. Joaquim narra uma trama delirante para mim e para seu psiquiatra que tem estado mais enfraquecida, mas por vezes retorna: “não há como morar com sua mãe pois ela é X-9, trabalha para o tráfico de drogas e eles podem entrar na casa de madrugada enquanto estiver dormindo e matá-lo. Lá e muito perigoso, sua mãe é muito nervosa e não pode cuidar dele.”
Estamos acostumados (o que não é nada bom) a ver Joaquim sem conseguir sustentar aquilo que diz: vai morar com a filha, depois não quer mais morar com a filha; vai morar com a mãe e depois não pode mais morar com ela por uma impossibilidade delirante; então oferece como solução ir morar com o padrinho em São João de Meriti e fazer tratamento lá, o que para mim parece ser da mesma ordem de impossibilidades.
Meu temor é que estejamos valorizando demais a construção de um lugar material para abrigar Joaquim enquanto pessoa, corpo que não pode ficar na rua, que tem que ser cuidado se não busca a morte, seja por qual via for, pela palavra, pelo excesso de açúcar no café, pelas queimaduras de cigarro, pela injesta de medicamentos com cachaça no próprio CAPS, até um episódio de suposto AVC onde resultou em dias de uma internação clínica. Temo que estejamos tão imbuídos e envolvidos pelo que chamamos, por vezes, de descaso familiar, que estejamos nos esquecendo de João psicótico, aquele que me parece que está querendo nos dizer que ser pai, sogro, avô, filho e provedor da família, não é seu lugar. Joaquim não tem um lugar concreto, como não me parece ter um lugar subjetivo onde possa identificar-se minimamente com alguma função que possa lhe trazer uma certa amarra na vida.
Temo ainda mais ter que afirmar que ele parece identificar-se com algo: com o lugar de maluco: “me deixa aqui ... o hospital é minha casa. Foi aqui que vivi, é aqui que quero morrer!”
Não podemos esquecer que Joaquim é um sujeito, precário, mas é, e como sujeito utiliza-se da linguagem.
Não podemos deixar de ressaltar e convocar uma discussão para aquilo que neste momento é mais patente para a equipe da enfermaria masculina: o retorno de Joaquim para o seio familiar, neste momento, está sendo totalmente desagregador para ele. É uma convocação a uma posição que ele não pode assumir.
Joaquim não está nem na RT, nem em casa, nem na enfermaria. Está de volta ao Albergue, o único lugar possível para ele habitar, mas não sem problemas, que se repetem e são infinitos.
Retomando o título deste trabalho, acredito que seja por isso que Joaquim é um desafio à desinstitucionalização.


Adriana Cabana de Q. Andrade

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